E se não fosse a dispersão
a mão perdida
este avesso, os lábios leves,
a cicatriz viva do silêncio
descosturada se evadiria
na piração da tarde esquálida
por onde eu já tinha fugido
com o meu duplo
eu que sempre fui a soma
dos contrários não canso
de cessar-me em poentes
com este olhar perdido e cego
enquanto leio Proust
em busca do tempo perdido
em busca do tempo perdido
eu que sou tecido
pelos fios das aranhas
vagamente tão finos
rasgo as frestas
eu que efabulo
as contradições dos cristais
numa troca bizarra de banquete
e nas dobras do guardanapo
os talheres são o instante de esplendor
e a marca deste poema no meu rosto
o óleo que mescla nossos corpos
desembaraçando o novelo das nuvens
e saudando com ternura o louva-a-deus
que me espreita distante
medindo a altura do seu voo
para escapar-me.
(José Carlos Sant Anna)