Busto de Aristóteles
Cópia romana de uma escultura de Lisipo
Para Tania Regina Contreiras,
A
moça está longe. Nas minhas tessituras é como se ela não estivesse do outro lado, quase consigo tocá-la, tomá-la amorosamente nos meus braços e na minha imaginação.
A
vida é desse jeito: às vezes irrompe uma ventania, outras, uma
trovoada, o corpo vai se encolhendo, o cabelo caindo, enquanto a criada vai espantando
moscas para que a gente não as engula com o bolo da comida amassada pelo garfo.
Sigo
pensando nessas pequenas coisas sem tirar o olho da moça, que finge que não me
vê através dos gestos suaves que faz com as mãos alisando os cabelos. Com tantas moscas em redor não
há ritual plausível para o almoço, ainda mais se o prato principal está tão distante: a
moça longe, na outra extremidade da mesa.
Já
me inquieto quando ela me cumprimenta se rendendo às moscas. Sem se desfazer do
lenço que usa para espantá-las, percebo o quanto aquela aparência de moça fina, embelezada pela vida,
me seduz. Ela é agora a minha palavra. Ofereço-lhe o pão, pois o vinho ela já o
sorve em goles generosos.
Escrever
é um trabalho difícil, penoso, que exige muita disciplina, penso enquanto mastigo o pão, sem deixar que as
entrelinhas absorvam este pensamento cartesiano para o momento, mas, de qualquer
forma, devo comemorar a minha descoberta porque agora o meu olhar é outro
porque a moça também é outra depois da saudação.
A moça é outra, mas o meu olhar se
perde no depois na fragmentação daquele corpo nas minhas mãos como se fosse a poesia, é
o que faço com as palavras resgatando sua relação com a vida.
Aquele
corpo merece uma atenção interessada como se fosse um lírio, um texto em estado
puro que não se pode ler distraidamente. Não posso tomar aquele corpo como
se não fosse algo extraordinário, desconcertante. Aquele corpo é a palavra que
anima a minha linguagem, é o meu instrumento de trabalho, é a genealogia do
meu espírito.
Não
abordá-lo agora seria um gesto insano que eu cometeria, é como se fosse a
minha literatura requerendo muita paciência, admitindo seus mistérios, afinal,
ali está o corpo se oferecendo como as palavras, se descolando de si mesmo para surpreender com um leve toque nas minhas mãos: quase a desnudei com um único
olhar ou quase o desnudei nos lapsos do tempo e da memória.
A moça é a minha escrita, poderia me dar por satisfeito se, de fato, eu também não quisesse a moça da escrita numa baía rosada de amêndoas e avelãs.
Ali
está a minha concisão, o desejo, a depuração, a tara, o silêncio, o tudo do momento.
Ainda me olha, pareço
persegui-la, mas a coexistência já é pacífica, já se fundem nossos mundos,
já se mesclam duas realidades.
Ela também me persegue, parece inevitável o abraço, os indícios já não são tão sutis. A minha intuição diz que
vai rolar algo inevitável, que basta um gesto para que a palavra que me fascina
se faça carne, fogo, paixão.
A moça tem um cheiro tão bom, parece água rosada, lânguida, transparente, aguardo que me revele seus dotes como faz comigo a poesia para que eu descubra a sua voz.